A ética da vitória e o discurso de concessão
A democracia moderna se funda sob pilares materiais e subjetivos. Na primeira hipótese temos exemplos no constitucionalismo, a tripartição dos poderes, eleições livres e periódicas. Na segunda, a aceitabilidade social do resultado das eleições, a confrontação respeitosa de ideias, e a prática de uma “ética da vitória”. Este último conceito refere-se a um conjunto de rituais simbólicos que as partes em disputa adotam após o encerramento do certame, com o objetivo de preservar a coesão social e a legitimidade democrática.
Entre esses rituais destaca-se o “discurso de concessão”, ou “discurso de reconhecimento”. É o momento em que a parte vencida vem à público perante os seus para, reafirmando o pacto democrático, reconhecer o resultado do pleito, saudar o vitorioso e agradecer o apoio recebido durante o processo eleitoral. A democracia norte-americana consolidou os primeiros exemplos dessa prática em 1896, quando William Jennings Bryan, derrotado na eleição presidencial, enviou um telegrama ao republicano William McKinley, contendo apenas duas frases curtas, mas que se perpetuariam em uma tradição ética de grande impacto:
“HON. WM MACKINLEY, Cantom, Ohio: O Senador Jones acaba de me informar que os retornos indicam sua eleição, e apresso-me em estender meus parabéns. Submetemos a questão ao povo americano e sua vontade é lei.” WJ BRYAN. (1)
Há quem veja no “discurso de concessão” um dos pilares da estabilidade democrática. A meu juízo, para além disso, vejo como um aprendizado fundamental para nossa formação e crescimento pessoal e político, aprender com as perdas é tanto, ou talvez mais importante, que o aprendizado nas vitórias, lições como liderança, humildade e resiliência, amadurecem e se provam nos momentos difíceis e conflituosos, não naqueles efusivos e de glória.
Tenho gravado em minha memória afetiva o discurso do então Senador republicano Jonh MacCain, na noite de 4 de novembro de 2008, reconhecendo a primeira vitória presidencial de Barack Obama, ali estão, para mim, a personificação vivida de dignidade e humildade, honra e perseverança, força e altivez, e muito embora a história registre diversos outros momentos emblemáticos, esse tem para mim o sentido especial de ter sido assistido ao vivo durante uma transmissão televisiva vista em todo mundo.
“Meus amigos, chegamos ao fim de uma longa jornada. O povo americano falou e falou claramente. Há pouco, tive a honra de ligar para o senador Barack Obama para parabenizá-lo por ter sido eleito o próximo presidente do país que ambos amamos. Em uma competição tão longa e difícil como esta campanha tem sido, seu sucesso por si só impõe meu respeito por sua habilidade e perseverança. Mas o fato de ele ter conseguido fazer isso inspirando a esperança de tantos milhões de americanos, que uma vez acreditaram erroneamente que tinham pouco em jogo ou pouca influência na eleição de um presidente americano, é algo que admiro profundamente e o elogio por alcançar. Esta é uma eleição histórica e reconheço o significado especial que tem para os afro-americanos e para o orgulho especial que deve ser deles esta noite. (...) O senador Obama e eu tivemos e debatemos nossas diferenças, e ele prevaleceu. Sem dúvida, muitas dessas diferenças permanecem. Estes são tempos difíceis para nosso país, e prometo a ele esta noite fazer tudo ao meu alcance para ajudá-lo a nos conduzir através dos muitos desafios que enfrentamos. Exorto todos os americanos que me apoiaram a se juntarem a mim não apenas para parabenizá-lo, mas oferecer ao nosso próximo presidente nossa boa vontade e esforço sincero para encontrar maneiras de nos unirmos, para encontrar os compromissos necessários, para superar nossas diferenças e ajudar a restaurar nossa prosperidade, defender nossa segurança em um mundo perigoso, e deixar nossos filhos e netos um país mais forte e melhor do que o que herdamos. Quaisquer que sejam nossas diferenças, somos concidadãos americanos. E, por favor, acredite em mim quando digo que nenhuma relação significa mais para mim do que isso. É natural esta noite sentir alguma decepção, mas amanhã devemos ir além e trabalhar juntos para fazer nosso país andar novamente. Nós lutamos - nós lutamos o mais duro que podíamos. E embora tenhamos falhado, o fracasso é meu, não seu. (...) Não seria um americano digno desse nome se me arrependesse de um destino que me permitiu o extraordinário privilégio de servir a este país por meio século. Hoje fui candidato ao cargo mais alto do país que tanto amo. E esta noite, continuo seu servo. Isso é uma bênção o suficiente para qualquer pessoa e agradeço ao povo do Arizona por isso. Esta noite - esta noite, mais do que qualquer noite, não tenho em meu coração nada além de amor por este país e por todos os seus cidadãos, sejam eles que me apoiaram ou o senador Obama, desejo boa sorte ao homem que foi meu ex-oponente e será agora meu Presidente. (...) Os americanos nunca desistem. Nunca nos rendemos. Nunca nos escondemos da história. Fazemos história. Obrigado, e Deus o abençoe, e Deus abençoe a América.” (2)
Há, todavia, um pressuposto natural para o exercício do discurso concessivo, a oportunidade para fazê-lo, ou seja, o tempo e o espaço para que o vencido se manifeste com dignidade. Esse gesto, que poderia ser chamado de “concessão à concessão”, depende do respeito, a ética e a grandeza dos vencedores.
Os vitoriosos que franqueiam aos vencidos o momento para que possam expressar sua gratidão com os seus e o processo democrático, demonstram respeito pelo processo eleitoral. Pelo outros, que devem ser vistos como adversários contingenciais de ideias e não inimigos para serem humilhados publicamente. E sobretudo, pela minoria vencida, que em uma democracia, será também representada por eles.
Na política, solo fértil em que afloram os mais íntimos sentimentos humanos, como por exemplo: a inspiração pela transformação do outro e o mundo à sua volta, o orgulho pelo pertencimento simbólico, a esperança por um futuro melhor; assim como na vida, são os gestos e os exemplos que falam mais do que as palavras. Paz, união, respeito, não passam de expressões meramente retóricas quando divorciadas da ação condizente que as justifique.
E quando essa “ética da vitória” é rompida, o impacto pode ser profundo, como pude sentir no passado recente, em que atônito vivenciei uma ruptura evidente àquelaliturgia democrática. Durante o encerramento de uma eleição, os vencedores irromperam à frente de uma plateia composta pelos dois grupos em disputa, antes que o vencido tivesse a oportunidade de se retirar para estar e falar com os seus.
Talvez a força desse episódio tenha me atingido de forma particular porque, em outra ocasião, vivi o oposto: a experiência de ter meu momento de despedida respeitado, a dignidade de me retirar com os meus, para confortá-los por sua dor que também era minha, e reforçar em cada uma a compreensão da transitoriedade do processo democrático.
Por isso, acredito que a “ética da vitória” e o “discurso de concessão” não são meros formalismos, mas práticas que consolidam a democracia, reforçam o respeito às instituições e contribuem para a unidade social e àestabilidade política, especialmente em momentos de polarização. É por manter vivo comigo essa fé, que então subscrevo este artigo na esperança de que a luz do conhecimento possa iluminar a consciência da moralidade de todos envolvidos em um processo eleitoral, em qualquer sede de disputa política, tanto de ordem partidária ou institucional.
Ademais, para aqueles que censuraram meus protestos, quando, quase sem perceber, me pus em confronto ao denunciar a indignidade do ato e ao cuidar de reunir os meus para protegê-los daquele ambiente, deixo claro, mais uma vez, minha posição como homem, profissional do direito e cidadão: nunca me calarei diante de qualquer forma de opressão, contra quem for ou por qualquer razão, jamais deixarei de lutar por aquilo em que acredito, nem pouparei esforços para defender, com lealdade, aqueles que compartilham comigo os mesmos propósitos e ideais.
A história é pródiga, sobretudo para mim que já disto em anos e experiência, e já havia há muito resolvido cuidar mais da arte, do direito, a escrita e a poesia, porém não se pode fugir à luta de ser quem nós somos, superar aquilo que nos define, ou renegar os princípios dos quais não transigimos, e que este seja, simbolicamente, o meu legado, ou, no plano democrático, meu próprio “discurso de concessão” à “ética da vitória”.
(Wander Medeiros é Advogado, Professor de Direito, Ex-Conselheiro Federal da OAB e Doutorando em Direito)
REFERÊNCIAS:
(1) Livre tradução do telegrama enviado, em 05 de novembro de 1.896, pelo democrata William Jennings Bryan com seu discurso de concessão para o republicano eleito nas eleições americanas daquele ano, William McKinley. Fonte: <https://www.presidency.ucsb.edu/documents/telegram-william-mckinley-conceding-the-presidential-election >, acesso em 24/11/2024.
(2) Livre tradução do discurso de concessão, em 05 de novembro de 2.008, do republicano John McCain reconhecendo a vitória do democrata Barack Obama eleito nas eleições americanas daquele ano. Fonte: <https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/11/07/discursos-de-derrota-de-mccain-e-hillary-pediram-boa-vontade-com-o-vencedor.htm >, acesso em 24/11/2024.
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